
O contato com o povo Na'vi faz a identidade de Jake Sully sofrer metamorfose
Depois de tanto tentar e sempre falhar, enfim consigo assistir a Avatar. A produção de James Cameron investe pesado ao combinar terceira dimensão, alta definição e computação gráfica. E é bem-sucedido na empreitada, porque deslumbra numa sucessão impressionante de cores e formas. À primeira vista, Cameron pareceu falar de preservação, em tempos de desmatamento e mudanças climáticas. Mas um olhar mais acurado percebe um mergulho mais profundo na comunhão consigo mesmo e com a espiritualidade. É uma mensagem transmitida com competência por uma linha já experimentada anteriormente – por Edward Zwick em O Último Samurai.
Capitão da Guerra Civil nos Estados Unidos, Nathan Algren vai ao Japão a convite do seu comandante, o coronel Bagley. Tinham como objetivo treinar e equipar o exército na luta contra os samurais. A luta se tornaria desigual, porque os homens do imperador Meiji enfrentariam os rebeldes com armas de fogo. Mesmo com a vantagem tecnológica, contudo, o exército não estava pronto para uma batalha contra lutadores habilidosos e conhecedores dos meandros do ambiente. Era inevitável que saíssem derrotados – e na brincadeira Algren é aprisionado pelos samurais. E, em contato com os samurais, ainda guardiães de valores como honra e lealdade, muda de time.
O fuzileiro naval Jake Sully segue a mesma trilha. Aceita participar do Programa Avatar, comandado pela doutora Grace Augustine. Tinha a missão de assumir uma identidade Na’vi e ganhar a confiança do povo de Pandora, satélite do planeta Polifemo. Sully entrou na dança para conseguir dinheiro para a cura da paraplegia, e servia ao propósito porque é irmão gêmeo de Thomas, um dos cientistas de Grace, que morreu em missão. Sua composição genética, portanto, era ideal para dar prosseguimento à empreitada. O militar, no entanto, deveria responder a uma guarnição bem diferente: o coronel Miles Quaritch e Parker Selfridge, que desejavam extrair unobtainium, um valioso minério existente no lugar. Precisava conseguir a mudança dos nativos via negociação. Mas a identidade de Sully começa a sofrer uma metamorfose: encontra na tribo um novo sentido pra vida e em Neytiri o amor.

O Último Samurai: Avatar bebe da mesma fonte
Quando foi lançado, Avatar chamou a atenção por reexplorar uma tecnologia até então adormecida no cinema: a terceira dimensão. Aliando-a à ascendente alta definição, bombou os cinemas e criou hordas de amantes e detratores. Com um orçamento superior a US$ 400 milhões, o diretor James Cameron abusou também de computação gráfica e efeitos especiais – e obteve um resultado dos mais vistosos, num deslumbre de cores, cenas e sons.
Com tanto atrativo visual, é natural que a trama não trouxesse grandes revoluções. O desejo dos humanos pela árvore sagrada dos Na’vi, depositária do tal unobtainium, aponta para a sanha predatória do homem ao seu ambiente em tempos de mudanças climáticas e insustentabilidade. Quero atentar, contudo, para um sentido em que o filme vai além: a espiritualidade, que se descortinava concreta, com a descoberta em Pandora de uma imensa rede a conectar todas as florestas e seres, numa versão multiplicada do cérebro humano. E a adoração a Eywa não é mera crendice. A árvore-santuário apenas a personifica, mas a divindade existe. Eywa age, ao convocar todos os seres para a guerra contra os predadores.
Transportados para o mundo real, veríamos céu e terra em confronto. Os humanos representam as trevas, não só sob a perspectiva macro, na busca pelo lucro em detrimento do ambiente; mas também por uma ótica aterrorizante, porque expõe as nossas chagas mais atávicas ao nos revelar capazes dos piores meios para atingirmos um fim. Pandora e Na’vi são o céu, fascinante em sua reverência a um ser maior e na manutenção de princípios. Aqui, Na’vi e samurais se encontram, posto que “convertem” o emissor do “mal” e o torna “bom”.
A ligação transcendental não para aí. Avatar tem origem no sânscrito e se desdobra em “aquele que descende de Deus”. Não, não hermetiza em seres tão avançados como Jesus, Buda ou Gandhi, mas universaliza; todos os seres são divinos, e assume uma roupagem terrena que os permite viver um período de aprendizado para posterior passagem a outras jornadas. Cada um a sua maneira, Grace e Sully vivenciaram esse ritual de passagem, assim como Nathan Algren. Como se dessem todos vida ao poeta grego Nikos Kazantzadis: não somos seres terrenos vivendo uma epopeia espiritual, mas seres espirituais vivendo uma epopeia terrena.
Crédito da foto Avatar: Portal R7
Crédito da foto O Último Samurai: Blog Mouser